Princesa e o Sapo: aspectos culturais e sociais - é um filme racista?

 


Foto do filme 'Princesa e o Sapo'. Fonte: Recreio.

Eu vi um vídeo no TikTok de uma menina dizendo que a animação, Princesa e o Sapo, da Disney é um filme racista e apontou alguns detalhes do filme para comprovar.

Esse é um dos meus filmes favoritos da Disney, pois ela não tirou o romantismo, mas não alimentou aquele velho enredo que a vida da princesa melhora após a chegada do príncipe. A Tiana sempre foi muito independente, mesmo filme sendo lançado em 2009 (um ano que ainda não era muito comum filmes infantis com essa abordagem).

Vamos aos aspectos tratados no vídeo.

 

O primeiro príncipe negro.


Foto Naveen, primeiro príncipe negro da Disney. Fonte: Wiki Index Fadom

No vídeo, ela diz que o Naveen, o primeiro príncipe negro, parece mais um vilão do que de fato um príncipe no início do filme. Eu tenho alguns pontos que eu considero que poderiam ser melhorados no Naveen e que foram mal pensados pela Disney.

O Naveen é um galã da Disney, esse príncipe tem o favoritismo de muitas pessoas. Um detalhe importante tratado no vídeo, é que ele é o primeiro príncipe que nunca demonstrou nenhum interesse em se casar.

Ele deixa bem claro no início e meio do filme que casamento, compromisso, não o atrai, o que ele quer mesmo é viver na farra. “Uma loira a minha esquerda, na direita uma morena. Ruiva para segurar a vela, me diga se não vale a pena?”, ele diz na música em que ele está com a Tiana e o Louis no rio, indo encontrar a Mama Odie para transformá-los em humanos novamente.

Isso pode não parecer um mal, inicialmente, mas com essa abordagem, a Disney acaba reforçando certos estereótipos dos homens negros na sociedade. O Naveen, acaba tendo uma imagem de um homem que não presta, é galinha, etc.

Nós mulheres somos ensinadas a procurarmos o nosso “príncipe encantado”, e o primeiro príncipe negro, totalmente estereotipado, será a referência de parceiro para muitas meninas quando estiverem mais velhas.

Também podemos pensar em outros estereótipos, como a falta de interesse do Naveen em trabalhar, ele é preguiçoso. Além disso, o enredo do filme se passa com o príncipe procurando uma mulher rica para se casar como uma forma de castigo dos seus pais para liberarem o dinheiro dele.

Ou seja, o Naveen acaba sendo colocado como “pobre”, pelo fato dos pais cortarem o seu dinheiro para obrigar o filho a se casar com uma mulher rica ou trabalhar. O primeiro príncipe negro é mulherengo, preguiçoso e “pobre”, totalmente fora do padrão de “príncipe” da Disney. Os homens negros na sociedade, também recebem esses estereótipos e aí que está a problemática do filme.

No vídeo, a menina cita o Flyn Ryder, o príncipe de enrolados, mas podemos relembrar que ele só se torna príncipe ao se casar com a princesa Rapunzel, então está mais aceito que ele não esteja dentro desses padrões. Entretanto, o foco é problematizar os estereótipos dos homens negros no primeiro príncipe negro da Disney.

 

A Tiana está em 90% do filme como um sapo e não como uma princesa


Cena do filme 'Princesa e o Sapo', Naveen e Tiana como sapos. Fonte: Rede Globo.

Essa parte é um pouco polêmica. O nome do filme é “A princesa e o Sapo”, a Disney traz uma reviravolta inesperada na história quando o beijo do Naveen e Tiana não funciona e ambos se tornam sapos. Na história original, o sapo receberia o beijo de uma princesa e se tornaria humano novamente e ambos seriam felizes para sempre e blá blá blá...

Ao decorrer do filme, podemos perceber que o motivo pelo qual o beijo deu errado, era porque a Tiana não era uma princesa, apenas se torna uma princesa quando decide ficar com o Naveen.

Eu acho que a história escolhida pela Disney para representar uma princesa negra pode ter sido, sim, tendenciosa. Pensando que, dentro desta narrativa, ela não estaria como uma princesa negra no filme, e sim, como um sapo. Nessa perspectiva,  podemos concluir que isso tira todo o peso da representatividade do filme, visto que, meninas negras não podem mais se sentir representadas pela princesa.

 Outro fator importante, é que o tema REPRESENTATIVIDADE NEGRA, é um tema muito atual. Em 2009, isso ainda não era uma discussão, mas, não justifica! Principalmente, se isso foi feito intencionalmente, o que nunca saberemos. Hoje em dia, os novos filmes da Disney, principalmente os sucessos com live action, tem sido tratado de formas diferentes. A Tiana agora não é mais a única princesa negra, a Ariel foi representada como uma mulher negra no live action.

 A Ariel negra gerou um grande conflito na internet, pois a personagem da animação sempre foi representada por uma mulher branca. Aparentemente, essas atitudes da empresa, tem sido para corrigir esses erros do passado, mas não cabe a nós esquecer deles, até mesmo para cobrar a sua mudança nos próximos filmes.

Acredito que a Disney tem tomado mais cuidado com suas escolhas para filmes, apesar desse erro já ter sido repetido no filme Soul, de 2020, em que o personagem principal é um homem negro, mas passa a maior parte do filme como uma alma, tirando novamente o peso da representatividade no filme e em uma época em que isso já era discutido nas mídias (para não usar de desculpa que foi por desinformação).


Filme 'Soul'. Fonte: Exame

Também podemos notar que em nenhuma parte da animação a Tiana com o cabelo solto, o que ajudou a promover a recente campanha da Disney com a Seda, onde a Tiana solta seus cachos pela primeira vez.

Cena da campanha da Seda com a Disney em que Tiana exibe seus cachos. Fonte: Seda.

Link para Campanha.

“Magia Negra”

Esse foi o único ponto que discordei do vídeo, pois considero que o filme da Princesa e o Sapo foi culturalmente muito bem construído. Sempre admirei a Disney por conduzir o telespectador dentro da cultura e etnia de seus personagens e isso não foi diferente no filme Princesa e o Sapo.

O que me chamou atenção na declaração da garota do vídeo foi o termo “magia negra” ao apontar que a Disney sai dos padrões de “fada madrinha”, “maçã envenenada”, etc. Ela relata que justo no filme com protagonistas negros tem tratado “magia negra”, da pior forma possível.

Eu discordo dessa parte, trazendo de novo a capacidade da Disney em conduzir o telespectador para dentro da cultura dos seus personagens. A “magia negra” tratada no filme é Vodoo! Uma religião de matriz africana, assim como o Candomblé no Brasil. O filme não poderia ter sido melhor representado, saindo do padrão de magia europeia para um filme de protagonistas negros.


 Vodoo no continente africano. Fonte: Brasil Escola.


Vodoo – contexto histórico

O Vodoo (ou ‘vodu’) teve origem no continente africano e se tornou oficial no Haiti, e assim como o Candomblé aqui no Brasil, o Vodoo também passou pelo sincretismo religioso como forma de resistência. Resumidamente, o governo do Haiti chegou a proibir a prática da religião e obrigar os povos a adotarem o catolicismo romano, mas a religião já tinha suas raízes fincadas e o governo não teve sucesso com suas leis.

Assim como no Candomblé, o Vodoo também tem os seus rituais marcados por músicas, danças e muita comida. Quando a religião chegou na bahia, misturou-se com outras práticas religiosas e em território baiano foi chamado de candomblé jeje.

A cidade de Nova Orleans, onde acontece o filme de Princesa e o Sapo, tem influências culturais dos seus colonizadores europeus, mas também a influência da cultura africana. Dentre as religiões praticadas na região, está o catolicismo e, obviamente, o Vodoo.


Dr. Facilier jogando cartas. Fonte: Amino Apps.  

Enfim, voltando ao filme... nesse aspecto, na minha opinião, a Disney foi cirúrgica! Saiu dos padrões europeus de magia e trouxe práticas mais próximas das religiões africanas em um filme de protagonismo negro. Acertaram muito!

Acredito que por muitos de nós sermos crianças na época do lançamento, não conseguimos entender a mensagem do filme e ter visto o Dr. Facilier, o vilão, e a sua prática como ruins, por própria influência do enredo do filme, ele se dá mal no final, logo, ele estava errado.

Eu me arrisco em dizer que o Dr. Facilier, não é um vilão. Uma visão mais amadurecida e estudada pelo contexto histórico e religioso do filme, ele é apenas um praticante de vodoo que presta serviços para aqueles que o procuravam, ele nunca obrigou ninguém a fazer um feitiço! Ele mesmo tira a responsabilidade de si caso a pessoa não goste do resultado, ou seja, as pessoas com problemas o procurava para resolvê-los e ele usava da magia. “Culpe os meus amigos do outro lado”.


Dr. Facilier. Fonte: SoundClound.

Mais à frente no filme, quando Naveen e Tiana encontram a Mama Odie, tembém praticante de Vodoo, deixado claro no filme, tem mais responsabilidade que o Dr. Facilier, que os ensina que a única forma de chegar no que você deseja é trabalhando duro, “cavando mais fundo”. Ela cita na música que várias pessoas também já a procuraram solicitando que ela resolva seus problemas e ela aconselha: aquilo que você quer, pode não ser o que você precisa.

Mama Odie. Fonte: Wordpress

O que podemos analisar na música do Dr. Facilier é o final: “conseguiram o que queriam, mas perderam o que tinham”. Em outras cenas desse personagem, podemos analisar outras pessoas que já procuraram por seus serviços: como um homem que não tinha cabelo nenhum e pediu para que tivesse para ser mais atraente para as mulheres, mas ao fazer o feitiço, começou a crescer cabelo por todos os lugares da sua face e ele ficou menos atraente ainda, mas ele conseguiu o cabelo que queria, concordam? O que podemos refletir daí, é que ele queria o cabelo, mas talvez só precisasse de mais confiança e alguém, em algum momento iria gostar dele como ele era.

Nós costumamos reclamar muito da nossa realidade e achar que a nossa vida seria muito melhor se fosse da forma que nós imaginamos, talvez, perder tudo que temos hoje e consideramos ruim, seja muito pior. Porém, se queremos mudar a nossa realidade, devemos nos movimentar em benefício daquilo que queremos, dessa forma trabalhamos a nossa própria evolução pessoal.

A Tiana teve a oportunidade de ter o restaurante dos sonhos oferecido pelo Dr. Facilier, seria a forma mais fácil. A princesa ficou marcada pela sua determinação, força de vontade e tinha consciência de que tinha capacidade de conquistar o que ela tanto queria com o seu esforço e trabalho duro. O filme mostra a magia como um auxílio para o sucesso, mas não a solução para conquistá-lo, o movimento também é magia!  

 

Dr. Facilier X Barão Samedi

Eu considero o Dr. Facilier, o melhor “vilão” da Disney, muito bm pensado e construído. Uma curiosidade sobre ele: Ele pode ter sido feito baseado em uma entidade do Vodoo, o Barão Samedi, popularmente representado pela sua face de caveira.

Ao final da música, podemos ver o Barão... digo, o Dr. Facilier com uma face de caveira, isso no filme, pela interpretação de muitos telespectadores, foi uma forma da Disney mostrar um lado maligno do vilão, mas analisando o contexto cultural do filme, pode ter sido uma referência a entidade. Outra curiosidade, é que o Barão é semelhante ao Exu Caveira cultuado nas religiões de matriz africana no Brasil. A semelhança também se dá pelas vestes do personagem.

 



Dr. Facilier: Vestimentas e face de caveira na cena da música 'Amigos do Outro Lado'.


Representação do Barão Samedi, entidade do Vodoo.




Representação do Exu Caveira nas religiões de matriz africana no Brasil. 

Viram a semelhança?

 

Conclusão.

Tirem suas próprias conclusões: a Princesa e o Sapo é ou não, um filme racista?   

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